Vivi a vida toda cercada pelo som dos atabaques, o aroma do dendê e, inevitavelmente, a dura realidade de uma cidade que, se divide entre alta e baixa, não só na sua arquitetura, mas também pela desigualdade socioeconômica. E isso sempre ficou muito claro ao menor sinal de chuva: desaba sobre quem tem menos.
Salvador, minha cidade, onde o azul da Baía de Todos os Santos contrasta com a precariedade da infraestrutura, revelou mais uma vez a face do descaso. Em 11 de novembro, a chuva caiu impiedosa: em apenas três horas, 79% do volume previsto para o mês se precipitou, escancarando a crise climática que, combinada ao racismo ambiental, torna nossa vida — de negros e negras da favela, das encostas, das áreas de risco — um eterno campo de batalha.
Minha mãe, dona Regina Ferreira, 58 anos, mulher negra de pele clara, tem uma memória forte de infância: ela em cima do guarda roupa com seus irmãos, vendo seus brinquedos favoritos boiarem em uma mistura de lama, esgoto e água da chuva, enquanto meu avô tentava salvar o que era possível. Eu, Suelem Diniz, mulher negra de pele escura, não vivi com exatidão esse trauma, mas tenho um outro medo pra conta: a angústia das sirenes da Defesa Civil (CODESAL).
Lembro-me bem de quando tinha 17 anos e instalaram três sirenes de alerta de chuvas nas comunidades do meu bairro. Em uma noite de forte temporal, elas começaram a tocar. Acordei assustada, as três sirenes tocando juntas, um sinal ensurdecedor de evacuação. E mesmo morando fora da zona de risco, o medo me invadiu — minha mente corria, pensando naqueles que, como eu, ouviram o som, e estavam apavorados tentando salvar o que podiam, como também naqueles que não sairiam, já que, apesar de pouco, o “barraco na encosta” era tudo o que tinham.
Gerações se passaram, mas ainda é rotina, cada gota que inunda a cidade pesa mais para o povo preto e periférico. Em Salvador, onde a maioria da população se considera parda ou negra, as chuvas trazem sempre a mesma cena: ruas e casas engolidas pela água, barracos destelhados e famílias desalojadas.
Psirico já cantava em um clássico de carnaval “Com a força da natureza a gente não pode brigar / O que resta pra esse povo é somente ajoelhar”, expressando um sentimento e crença de um povo que só vê saída em recorrer aos santos e orixás. Mas eu discordo. A crise climática é uma realidade global, mas suas consequências são profundamente locais e racializadas.
A chuva não escolhe a quem afetar, mas o racismo ambiental já fez essa escolha: são os negros, os periféricos, que sofrem mais. Enfrentamos o peso das águas, mas também a escassez de políticas públicas que amparem nossa existência em tempos de crise.
Apesar de histórias e memórias que se repetem em ciclos, o sofrimento é evitável. E é aqui que entra a importância do financiamento — uma palavra que parece distante, mas que é, na verdade, um meio prático de transformação com a destinação de recursos para quem mais precisa, projetos de infraestrutura, sistemas de escoamento, reurbanização das encostas e casas dignas precisa ser uma prioridade, e não apenas uma promessa.
O financiamento para organizações, movimentos e coletivos que promovem a resiliência das populações negras em face das mudanças climáticas deve ser pauta. A resiliência climática para comunidades negras exige recursos, abordagens que considerem os impactos históricos, geográficos e estruturais de exclusão e vulnerabilidade.
A intenção é que os financiamentos cheguem a quem está na linha de frente dos impactos climáticos, apoiando não apenas adaptações ao clima, mas também promovendo a autonomia e a justiça ambiental para quem mora em comunidades e locais de risco.
Salvador, a cidade com a maior população negra fora da África, só recentemente ganhou o feriado da Consciência Negra. Com o feriado, vem a reflexão, e com a reflexão, a urgência de discutir não apenas a cultura e a história negra, mas o desejo de que a chuva seja um fenômeno natural, e não uma ameaça constante às condições de vida desse povo que sustenta a cidade.
Suelem Diniz é baiana, mulher preta e formada em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Comunicadora no FunBEA – Fundo para ação Climática é também criadora do projeto História que a História não conta, escreveu 2 livros pelo projeto voltados à representatividade negra.