Humberto Messias, junto ao Movimento Baia do Araçá, foi um dos selecionados na Chamada Pública FunBEA pela Educação e Justiça Climática
Na região central do canal de São Sebastião, cidade do litoral norte de São Paulo, está localizado um dos últimos remanescentes de manguezal entre os municípios de Bertioga e Ubatuba: o Mangue do Araçá. O ecossistema compõe a paisagem da Baía do Araçá, uma enseada de cerca de 500 mil metros quadrados que abriga as praias de Pernambuco, Germano e Topo. Também fazem parte da baía as ilhas Pernambuco e Pedroso, além de costões rochosos e o Córrego Mãe Isabel. Há quase noventa anos, a região vem resistindo às pressões antrópicas, que tiveram início a partir da criação do Porto de São Sebastião, ainda em 1936. De lá para cá, a Baía do Araçá sofre com descarga de esgoto doméstico, descarte de resíduos e processos de aterramento que alteram a configuração original do local. Em meio a esse cenário, a comunidade tradicional caiçara da região resiste e defende o seu território.
Um dos principais ativistas pela preservação do Mangue do Araçá é Humberto Messias, caiçara de São Sebastião que cresceu e viveu a maior parte da sua vida na baía. Desde 2010, trabalha produzindo e plantando mudas da flora nativa do mangue. “Não faço porque sou obrigado, mas faço porque eu amo esse lugar e não me vejo morando em nenhum outro”, conta. A região da enseada, além de ser considerada um hot spot de biodiversidade e um berçário de vida fundamental para a garantia do equilíbrio ambiental, tem também um papel importante na preservação e manutenção da cultura caiçara e das comunidades que ali vivem.
O trabalho de replantio do mangue teve início a partir de um curso de “Jovem viveirista”, ofertado pela prefeitura municipal no ano de 2010. Humberto participou da formação e se encantou com a possibilidade de restaurar o seu território. Primeiro, tentou trabalhar com o jundu, uma vegetação nativa formada por gramíneas e arbustos, que realizam a importante função de conter o avanço das marés e a erosão das praias, além de proteger encostas e pequenos animais. Encontrou algumas dificuldades no caminho e decidiu, então, trabalhar com o ecossistema dos manguezais.
Dentre inúmeras tentativas de produzir uma muda resistente às ameaças da região, o conhecimento e o amor sobre a baía foram essenciais para que Humberto encontrasse alternativas que funcionassem em um local com características específicas, como é o caso do Mangue do Araçá. Segundo o caiçara, essa região é diferente de outras baías por possuir muitos sedimentos vindos das obras de dragagem feitas durante a construção e ampliação do porto de São Sebastião. Esse cenário deixava as mudas sem resistência à força das marés. Outra questão era a poluição causada pelo despejo de esgoto nas águas, que também influenciava na saúde das mudas. “Elas amarelavam e morriam”, lamenta.
“Eu comecei a trazer essas mudas para dentro da minha casa. Misturava a água doce com a água salgada para a muda se acostumar. Deu muito certo e foi dessa forma que começou e a gente faz isso até hoje”, explica o caiçara.
“A nossa comunidade foi roubada”
A região da Bacia do Araçá sempre foi cobiçada em razão de seu grande potencial econômico. Em meados dos séculos XIX, o porto de São Sebastião ainda funcionava no formato de um “porto natural” que acompanhava a geografia da costa. Por meio dele era escoada a produção de açúcar, café, aguardente de cana, tabaco e louça de barro vinda do interior paulista. Foi em meados da década de 30 que o cenário começou a mudar drasticamente. No ano de 1936 deram início à construção oficial do Porto de São Sebastião, inaugurado dezenove anos depois, em 1955. Nesse processo, o território sofreu sua primeira grande transformação. As praias do Areião e da Frente, que antes formavam uma extensão de areia contínua, foram então divididas, deixando a região com um formato parecido com o atual.
Ainda na década de 50, a Petrobras chegou à região e, anos mais tarde, conduziu a construção do Terminal Marítimo Almirante Barroso (TEBAR) – de acordo com a Marinha do Brasil, esse é o maior terminal de graneis líquidos da América Latina. Em consonância com a expansão da região, foi iniciada a ampliação do porto nas décadas de 70 e 80. As obras tiveram como consequência o aterramento das praias da Frente e do Areião. “A ampliação do porto cortou a nossa comunidade, que na época não era especificamente Baía do Araçá, mas era conhecida como praia do Areião ou praia do Centro. O porto veio, cortou o morro e foi fazendo um aterro que separou a nossa comunidade”, explica Humberto. “Desde quando o porto se instalou aqui, a nossa comunidade foi roubada”.
A construção e ampliação do Porto de São Sebastião aliadas à construção da Rodovia Rio Santos (SP-055), que atravessa todo o município, fez com que a cidade assistisse a um crescimento desenfreado a partir da década de 70. Em paralelo, nessa época o debate acerca das unidades de conservação ganhava fôlego no Brasil. Hoje, a Baía do Araçá está dentro da Área de Proteção Ambiental Municipal de Alcatrazes, criada em 1992, e da Área de Proteção Ambiental Estadual do Litoral Norte do Estado de São Paulo. Ainda assim, seguem sendo discutidas novas ampliações do Porto de São Sebastião que terão um impacto direto na Baía do Araçá, tanto para sua biodiversidade, quanto para as famílias caiçaras que ainda resistem na região.
Em meados da década de 2010, foi proposto um projeto para a construção de uma laje sobre estacas de 500 mil metros quadrados, com o objetivo de duplicar a área do porto. A obra tinha como resultado a cobertura de 75% da baía, gerando danos irreversíveis. O projeto, que estava dividido em quatro fases, teve as duas primeiras etapas aprovadas pelo Ibama em 2013. Porém, cinco meses depois, a licença foi suspensa após a Procuradoria da República em Caraguatatuba e o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema), do Ministério Público, entrarem com uma ação civil pública contra a liberação.
Durante o governo Jair Bolsonaro, a pauta retornou e, sob a liderança do então ministro da Infraestrutura e atual governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, foi desenvolvido um projeto de privatização do porto de São Sebastião. Em fevereiro de 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) validou o projeto, o que reacendeu a discussão sobre uma possível ampliação do porto e os seus impactos sobre a Baía do Araçá.
“O que a gente faz aqui não é só para a gente, é para todo mundo”
Enquanto de um lado a Baía do Araçá sufoca entre obras cada vez mais gananciosas, por outro, é um fôlego de vida e esperança. O trabalho que Humberto desenvolve em um dos últimos remanescentes de manguezal do litoral norte de São Paulo há catorze anos tem impactos diretos no futuro da humanidade. O ecossistema de manguezais tem a capacidade de captar e armazenar grandes quantidades de carbono, um dos principais gases causadores do efeito estufa e, consequentemente, da crise climática. “O que a gente faz aqui não é só para a gente, é para todo mundo. Quando a gente planta um mangue, isso vai refletir não só para mim, mas para todo ser humano que respira”, explica Humberto.
Em 2024, ele foi um dos selecionados pela Chamada Pública FunBEA pela Educação e Justiça Climática por meio do Movimento Baía do Araçá e recebeu um apoio financeiro de R$ 30 mil reais, além de um apoio indireto e formador em Desenvolvimento Institucional, que acontece por meio das Comunidades de Aprendizagem. O FunBEA acredita na potência das soluções locais em diálogo com a realidade das populações e das comunidades tradicionais. Segundo Humberto, esse tipo de apoio “ajuda, incentiva e dá um ar de reconhecimento para aquelas pessoas que estão fazendo e nunca são vistas”.
A história de Humberto ilustra a força que o conhecimento sobre o seu próprio território possui. O caiçara desenvolveu um método próprio de produção de mudas resistentes ao ambiente do Mangue do Araçá, o que só foi possível pelo conhecimento que tem sobre o local que escolheu para passar sua vida. “A gente realmente quer que o mangue volte a ser o que era antes”, finaliza.